Documentos de Referência
Razões para a criação da Cátedra – Educação, Cidadania e Diversidade Cultural, 2017
Razões para a criação da Cátedra UNESCO “Educação, Cidadania e Diversidade Cultural” no âmbito da Área da Sociomuseologia na ULHT, Judite Primo, Pedro Pereira Leite, Mário Moutinho, in A Universidade Certa na Hora Certa para a Lusofonia Certa, Edições Universitárias Lusófonas, 3ª edição, revista, Lisboa 2017.
A cátedra UNESCO “Educação, Cidadania e Diversidade Cultural” criada na ULHT em novembro de 2017 tem raízes profundas no trabalho aqui desenvolvido desde o início dos anos 90 no campo da Sociomuseologia. Trata-se de um percurso complexo assente num diálogo entre os paradigmas, e as razões da Museologia tradicional com uma conceção de Museologia dialógica e também as suas razões. Como sublinhou Michael Burawoy a propósito da relação da Sociologia Pública com as “outras” Sociologias, de uma relação de “interdependência antagônica” entre uma realidade construída, relativamente consensual, com uma outra realidade, que estando em construção tem as suas razões, ancoradas criticamente no presente, nos desafios da contemporaneidade.
E serão estes desafios e razões da contemporaneidade, que de forma incontornável desde o fim da II Guerra Mundial, sustentaram as profundas transformações que ocorreram no mundo dos museus. Esses desafios que abrangem todos os domínios da vida em sociedade são naturalmente os mesmos que a recém-criada UNESCO iria enfrentar.
Numa primeira fase tratava-se de equacionar as “urgências” resultantes das múltiplas devastações que a II Guerra tinha provocado. Assim se compreende o relevo que era dado à segurança física, à gestão, à preservação e ao restauro dos acervos museológicos, os quais necessitavam naturalmente de cuidados especiais.
Mas a atividade desenvolvida neste campo em breve se alargou ao questionamento do lugar que os museus poderiam ou deveriam ter num mundo, tanto em reconstrução como em mudança. É assim que a UNESCO passou a ter um papel fundamental no equacionar dos diferentes desafios societais e na construção de encaminhamentos que em breve se introduziram num número crescente de regiões e de países, incluindo por diversas razões, a parte do planeta que desde o fim dos anos 50 conseguiu libertar-se, mesmo que parcialmente dos processos coloniais.
A articulação entre a UNESCO e o Conselho internacional dos Museus (ICOM), desde a altura em que estas duas instituições foram criadas, tem sido permanente e tem permitido por em evidência como ambas têm podido colaborar por forma a contribuir para a solução de questões da maior relevância tanto do ponto de vista prático como do ponto de vista conceitual nos assuntos relativos aos museus e à museologia. Para lá dos projetos, em que estiveram em parceria em várias partes do Mundo, os quais deram o sinal inequívoco da relevância da dimensão patrimonial no desenvolvimento da humanidade, importa reconhecer o papel Unesco na elaboração e disseminação de documentos, fundamentais para a elaboração das mais diversas politicas públicas indiretamente relacionadas com o campo do Património e dos Museus.
Pensamos em particular em documentos de alerta sobre determinados domínios da cultura construídos com a cautela que cada situação podia exigir em cada época, tais como: Convenção do Património Mundial Cultural e Natural (1972), Declaração sobre a Diversidade Cultural (2001), Convenção para a Salvaguarda do Património Imaterial (2003), Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005), Recomendação sobre a Paisagem Urbana História, (2011). Importa referir a criação do “Comitê intergovernamental para a promoção do retorno dos bens culturais a seus países de origem ou sua restituição em caso de apropriação ilegal” (1978) na sequência de anteriores resoluções da ONU que trataram a questão da restituição de bens culturais no caso de conflitos armados (1954) ou da restituição em caso de apropriação ilegal (1973) como foi prática corrente durante o período colonial, para encher os acervos do que hoje são ainda considerados os “Grandes Museus”.
Nestes documentos se encontra não só uma avaliação do pensamento de cada época sobre os diferentes aspetos que cada assunto pode assumir, mas também um conjunto de orientações, por vezes mesmo recomendações, que mais tarde ou mais cedo acabam por ser tidos em consideração e que virão a favorecer ou mesmo viabilizar, a tomada de medidas assertivas, não só pelos poderes públicos, como também pelas mais diversas organizações sociais.
Esta “arquitetura” normativa, Convenções e Recomendações e Declarações, da UNESCO e de organizações internacionais (como o ICOM e o ICOMOS), ou regionais (como o Conselho da Europa) constituem um relevante conjunto de recursos para as práticas museológicas, intervenção no Património e para as políticas culturais. Podemos olhara para estes recursos como uma importante fonte de afirmação dos Direitos Culturais e da Dignidade Humana. No entanto são também limitados pelas ideias e conceções hegemónicas de cada tempo e pelos jogos de poder dos diferentes atores no âmbito destas organizações. Por exemplo, a questão dos Direitos de Autor, uma importante convecção da UNESCO que sustenta a regulação de relevantes mercados culturais, apresenta-se ainda hoje centrada na criação individual e cosmopolita, excluindo as criações e as práticas criativas dos povos indígenas e das comunidades populares, que embora possam ser protegidos noutras formas, permanecem excluídas dos benefícios económicos que a partir delas podem ser gerados.
Isto significa que há hoje questões que até à pouco tempo estavam fora das agendas culturais, como a inclusão e a acessibilidade universal, o género, a sustentabilidade, a questão ambiental, as políticas urbanas, a literacia digital ou a segurança humana, que hoje são questões centrais da sociedade, exigem diálogos transdisciplinares e ações afirmativas nas organizações e junto dos atores culturais.
No que diz respeito especificamente aos museus, também devemos assinalar que a UNESCO, geralmente em parceria com o ICOM, ocupou um lugar de destaque na compreensão dos desafios com que progressivamente a comunidade museal, um pouco por toda a parte, se viu envolvida. Pensamos por exemplo no Seminário Regional da UNESCO sobre a Função Educativa dos Museus, que teve lugar no Rio de Janeiro em 1958, o qual pôs em evidencia que a função dos museus não se limitava às reais urgências do pós-guerra, mas que pelo contrario o Museu tinha a possibilidade, senão a obrigação de atuar no campo do desenvolvimento humano e, neste caso, no campo da educação. Dois anos mais tarde as questões da acessibilidade nos museus, que faz parte hoje em dia das preocupações de qualquer instituição museológica, foi exposta de forma incontornável. Tratou-se da Recomendação Relativa aos Meios Mais Efetivos de Tornar os Museus Acessíveis a Todos (1960).
Enfim nas resoluções adotadas pela Mesa Redonda de santiago do Chile de 1972 ICOM-UNESCO, que atualmente é reconhecida como um documento essencial para uma atuação minimamente esclarecida no campo da museologia se considerava que:
Que o museu é uma instituição a serviço da sociedade, da qual é parte integrante e que possui nele mesmo os elementos que lhe permitem participar na formação da consciência das comunidades que ele serve; que ele pode contribuir para o engajamento destas comunidades na ação, situando suas atividades em um quadro histórico que permita esclarecer os problemas atuais, isto é, ligando o passado ao presente, engajando-se nas mudanças de estrutura em curso e provocando outras mudanças no interior de suas respetivas realidades nacionais;
Que esta nova conceção não implica na supressão dos museus atuais, nem na renúncia aos museus especializados, mas que se considera que ela permitirá aos museus se desenvolverem e evoluírem da maneira mais racional e mais lógica, a fim de melhor servir à sociedade; que, em certos casos, a transformação prevista ocorrerá lenta e mesmo experimentalmente, mas que, em outros, ela poderá ser o princípio diretor essencial;[1]
Muitos outros documentos trataram assuntos que diretamente tinham a ver com os Museus ou onde as questões museológicas estavam indiretamente comtempladas, até que recentemente uma nova recomendação veio esclarecer a função que os museus podem, ou devem ter na sociedade contemporânea. Pensamos na Recomendação sobre Museus, Coleções sua Diversidade e Função na Sociedade, (2015) onde se assume claramente a função social dos Museus como agentes que atuam pela integração e coesão social e de forma mais ampla pelos direitos humanos. Neste sentido pode ler-se que:
- Os Estados Membros são encorajados a apoiar a função social dos museus que foi enfatizada na Declaração de Santiago do Chile de 1972. Em todos os países é crescente a perceção de que os museus desempenham uma função chave na sociedade, e constituem um fator de integração e coesão social. Nesse sentido, eles podem ajudar as comunidades a enfrentar as profundas mudanças na sociedade, inclusive as que levam a um aumento da desigualdade e à dissolução de laços sociais.
- Os museus são espaços públicos vitais que deveriam dedicar-se a toda a sociedade e podem, portanto, desempenhar uma função importante no desenvolvimento de laços sociais e coesão, na construção da cidadania, e na reflexão sobre as identidades coletivas. Os museus deveriam ser lugares abertos a todos e comprometidos com a acessibilidade física e cultural para todos, inclusive grupos desfavorecidos. Eles podem constituir-se como espaços para a reflexão e o debate sobre temas históricos, sociais, culturais e científicos. Os museus devem também promover o respeito aos direitos humanos e à igualdade de gênero. Os Estados Membros devem encorajar os museus a desempenhar todas essas funções.[2]
Ora, na definição evolutiva de Sociomuseologia (parafraseando a Definição Evolutiva de Ecomuseus de Georges Henri Rivière) apresentada na XII Conferencia internacional do MINOM organizada em 2007 no Departamento de Museologia da ULHT, se expressava um entendimento sobre o lugar dos museus na sociedade contemporânea em tudo semelhante. Nela se pretendia que:
A Sociomuseologia traduz uma parte considerável do esforço de adequação das estruturas museológicas aos condicionalismos da sociedade contemporânea. A abertura do museu ao meio e a sua relação orgânica com o contexto social que lhe dá vida, tem provocado a necessidade de elaborar e esclarecer relações, noções e conceitos que podem dar conta deste processo.
A Sociomuseologia constitui-se, assim, como uma área disciplinar de ensino, investigação e atuação que privilegia a articulação da museologia, em particular, com as áreas do conhecimento das Ciências Humanas (…). A abordagem multidisciplinar da Sociomuseologia visa consolidar o reconhecimento da museologia como recurso para o desenvolvimento sustentável da humanidade, assentada na igualdade de oportunidades e na inclusão social e econômica.[3]
E é esta Sociomuseologia que atualmente é reconhecida como uma escola de pensamento museológico, ou mesmo como uma área disciplinar, que tem sustentado conceitualmente não só as diferentes atividades de investigação, intervenção, e disseminação desenvolvidas pelo Departamento, como também a formação pós-graduada e a formação de especialidade assegurada pelo Departamento, tanto a nível nacional como internacional.
Trata-se de assumir e reconhecer que as questões do desenvolvimento e da Cultura são cada vez mais elementos de uma responsabilidade Social onde deve assentar a intervenção museal.
Trata-se de reconhecer que todas as sociedades estão em permanente mudança pelo que a atuação dos museus deverá assentar e atuar nessa própria transformação social.
Trata-se de reconhecer que os recursos humanos envolvidos nas diversas e ampliadas funções dos museus carecem cada vez mais de formação aprofundada que ultrapassa as tradicionais formações técnicas que esgotam a atuações dos museus centrados exclusivamente sobre as suas coleções.
Na verdade, a recomendação da UNESCO de 2015 pôs em evidência que o trajeto seguido tinha agora como respaldo um documento da maior relevância elaborado no quadro de um longo debate no qual participaram mais de 160 especialistas e de pelo menos 70 Estados Membros[4].
Importa também assinalar dois aspetos que estão na origem desta Cátedra e resultam do trabalho desenvolvido no Departamento desde a sua fundação e que naturalmente estão plasmados neste projeto. Desde 1992 que o Departamento privilegiou por diversas razões uma relação permanente com Universidades e Museus brasileiros, nomeadamente a USP São Paulo, a UFBa Salvador e a UNIRIO Rio de Janeiro, parcerias que permitiram que todos os anos desde então, houvesse intercambio de docentes, discentes e profissionais. Atravessando o Atlântico nos dois sentidos, participando na organização de conferências internacionais e seminários de investigação, montando exposições, proporcionando um conhecimento das realidades museológicas em ambos os países. Quando o Ministro Gilberto Gil recebeu em 2007 na presença do então Ministro da Cultura português, o Doutoramento Honoris Causa pela ULHT, como o próprio assinalou, a causa que justificava a homenagem era exatamente a causa da partilha e do dialogo que favoreciam o respeito pela diferença no campo da Museologia Social entre Portugal e Brasil.
São anos de trocas intensas e afetuosas entre professores alunos e profissionais que permitiram o reconhecimento de novos modelos e processos contemporâneos da Museologia social, de forma aliada a uma profunda reflecção crítica dos caminhos percorridos e pretendidos para melhor compreender os limites dessa museologia, mas também construir um referencial teórico desta escola de pensamento. Coube aos Cadernos de Sociomuseologia editados pelo Departamento de disseminar esse pensamento. Atualmente, com mais de 50 volumes publicados ininterruptamente desde 1993, esta revista é a mais antiga publicação em Língua portuguesa no campo da museologia, fruto desta parceria entre os dois lados do Oceano. Assim se compreende que o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) seja um dos promotores desta Cátedra. Num mesmo sentido, o envolvimento da CPLP significa uma vontade real de alargar a todos os países de língua oficial portuguesa a intervenção social que a Cátedra pretende vir a desenvolver em favor do diálogo entre povos que tanto precisam de mais e melhor desenvolvimento social económico e territorial.
Assim se compreende que na estruturação da Cátedra pudesse naturalmente ser estabelecido um conjunto de princípios que se reconhecem estar em simultâneo na base da Sociomuseologia das multifacetadas práticas da Museologia social e dos Objetivos e processos de trabalho adotados pela própria UNESCO.
Modelo colaborativo. A cátedra defende os processos participativos e a da cocriação;
Sustentabilidade. A cátedra assume-se como um projeto que procura o princípio da sustentabilidade integral dos processos de ação, assumindo-se como uma comunidade autofinanciada;
Aceitação da pluralidade: os processos de ação regem-se pelos princípios éticos da aceitação da diferença, da pluralidade dos olhares, e da integração das diferentes visões do mundo;
Flexibilidade. Os processos de ação são flexíveis e ajustam-se às dinâmicas processuais;
Solidariedade de cocriação. Os processos locais são desenvolvidos pelos parceiros locais e os seus resultados partilhados na rede. [5]
A estes princípios importa ainda acrescentar que o trabalho em parceria com instituições e indivíduos que se alimenta das relações assentes em procedimentos dialógicos, tal como objetivado no âmbito da Sociomuseologia, tem em consideração não só os processos participativos e de cocriação como referido, mas também naquilo que podemos denominar por iteratividade social, ou seja, reconhecem como essencial, não só a intervenção das partes na caracterização dos desafios e na elaboração de soluções, como também implica a verificação dos encaminhamentos, análise dos resultados e reformulação incremental dos sucessivos encaminhamentos. Esta iteratividade social valoriza assim um processo dinâmico e continuado de interação estre as diferentes partes, único garante de efetiva partilha e direito de decisão.
E é com base nestes princípios que a Cátedra pretende por seu lado envolver-se em ações que promovam os objetivos estratégico da UNESCO para 2021 nomeadamente: (OE1) Criar um sistema educativo que promova uma educação de qualidade ao logo da vida para todos; (OE2) – Ensinar os alunos a serem cidadãos mundiais criativos e responsáveis; (OE6) – Apoiar o desenvolvimento social inclusivo e promover o diálogo e a aproximação de culturas e (OE 7) – Fomentar a criatividade e a diversidade das expressões criativas.
Podemos, pois, reconhecer que a Cátedra resulta de um conjunto de razões onde podemos destacar o longo caminho percorrido pela UNESCO e pelo ICOM no abrir a compreensão da museologia em cada momento ao mundo do seu tempo, e por isso referimos um conjunto de documentos que marcam esses momentos. Igualmente, posemos em evidencia como a área da Museologia na ULHT desde a sua criação no início dos anos 90 sempre teve como enfoque a função social dos museus contribuído de diferentes maneiras para a criação de escola de pensamento atualmente denominada por Sociomuseologia. Uma renovação da Museologia em diferentes cores que desde 1991 deu forma ao trabalho do nosso Departamento, no qual a Nova Museologia, a Altermuseologia, a Museologia Pública, e a Sociomuseologia expressam um entendimento da Museologia como parte do campo das Ciências Sociais ao serviço da Dignidade Humana.
[1] Mesa-Redonda de Santiago do Chile – ICOM, 1972 Tradução Marcelo M. Araújo e Mª Cristina º Bruno, http://www.museologia-portugal.net/apresentacao/textos-referencia
[2] http://www.museologia-portugal.net/apresentacao/textos-referencia
[3] Moutinho M., Definição evolutiva de Sociomuseologia: Proposta para reflexão, Actas do XII Atelier Internacional do MINOM -ULHT, Lisboa, Cadernos de Sociomuseologia nº 28 ISSN 1646-3714 (2007)
[4] Breves considerações sobre a genealogia e o significado da Recomendação da UNESCO de Nov 2015, Cadernos de Sociomuseologia, v. 54, n. 10, 2017
[5] Carta de Princípios da Cátedra UNITWIN da ULHT “Educação, Cidadania e Diversidade Cultural”